“Pessoas estão morrendo na
cidade. Essa cidade de cinzas já está demasiado pútrida, sem sal, sem gosto,
sem vida. E eu trago a boa nova. Sou eu aquele que observa a todos de longe.
Sou eu que passo meus dedos frios pelo seu rosto quando você acorda de
madrugada, com medo, sem entender o por quê de ter acordado aquela hora, e com
uma desconfortável sensação de que está sendo observado. Pessoas morrem. Eu às
levo. Eu sou o condutor do trem de passagem. Estique-me sua mão e toque meus
dedos. Se você merecer, eu te levo comigo.
-O Profeta
Risonho”
A carta
fora deixada ao lado do cadáver. Seria clichê demais se estivesse escrita com
sangue. Não. Fora escrita à caneta. Preta. Em um pedaço de papel. Branco.
O cadáver?
Destroçado. Pudera a pobre coitada resistir, talvez. Mas fora inútil. Seu
estômago estava aberto em cortes cirúrgicos e precisos. Coisa de profissional,
sem dúvida.
No rosto
da pobre coitada, os olhos ainda abertos estavam embebidos de terror. “Puta que
me pariu...” pensou “Que filho da puta maníaco faria uma coisa dessas?”
Tiago era
o policial encarregado da operação. Eram cinco da manhã, ou quase isso. O sol
começava a raiar pelo mato do lado de fora da casa, e dava um tom mais ameno à
cena do crime.
Era uma
pequena casa de tijolos, abandonada e fodida, sem telhado e com as paredes meio
derrubadas. Ficava no meio do mato. O corpo da garota, estendido no chão, fazia
qualquer um que achasse aquele início de manhã bonito se lembrar de como o ser
humano não passa de um monte de merda.
Além de
Tiago, outro policial fazia companhia ao cadáver: seu nome era Rafael. Rapaz
jovem, porém sagaz.
Os dois
fumavam, apoiados na parede, com a esperança de que a fumaça e a nicotina
afastasse de suas narinas o fedor da pobre coitada estraçalhada no chão.
-Eu ainda
custo a acreditar que alguém faria isso com uma garota tão bonita- falou
Rafael, em meio a baforadas.
-E eu
custo a acreditar que alguém faria isso.
-Será que
o filha da puta estuprou ela antes ou depois de estraçalhar?
-Eu nem
quero pensar nessa merda! Sai pra lá!
-Fica
frio, Tiago. Olha ela aí. Quantos anos cê acha que ela tem, hein?
-Tinha, cê
quer dizer, né?
-Tinha,
tem, foda-se. Quantos anos?
Tiago
segurou a fumaça nos pulmões por um segundo, para refletir. Enquanto a nicotina
(mais queria ele que fosse cannabis) preenchia seus alvéolos pulmonares e fazia
o trabalho que o oxigênio não podia de lhe relaxar, turbilhões de imagens
preencheram a sua mente.
-Dezenove
no máximo.- respondeu ele.
Haviam
encontrado o corpo no fim da madrugada. Dois dias de busca pela garota
desaparecida, que sumira enquanto voltava da faculdade à pé, no fim da tarde. A
cidade era Araraquara, interior de São Paulo. Cidade tranquila, pode-se dizer
assim. Se não fosse pelo cheiro de laranja infernal que cobria aquele antro de
tranquilidade, podia-se até morar lá.
Natália
era seu nome. Desaparecera. Fora estuprada e estraçalhada. Deixara pra trás
falsos amigos, uma mãe descontente por ela ter escolhido o curso de química e
não medicina, um namorado que estava prestes a terminar o relacionamento, uma
colega de quarto imbecil e cinco quilos de pó no armário do quarto. Relatos das
pessoas próximas à garota diziam que a mesma andava dormindo mal nos últimos
dias. Chegava na faculdade com cara de ressaca, mas ninguém perguntava porra
nenhuma. Garotas daquele tipo eram conhecidas por passarem a noite bebendo nos
postos de gasolina da cidade ao lado de playboys, se entupindo de crack até
sair pelos olhos.
Mariana,
sua colega de quarto, afirmou que Natália não dormira nada nos últimos três
dias, com medo. Ouvia rangidos pela casa, unhas raspando na sua janela de
zinco, acordava no meio da noite com uma risada leve vindo de outro canto do
quarto, e que mesmo estando completamente sozinha, sempre se sentia observada.
Mariana não estranhara, pois achava que a amiga andava usando algum tipo de
droga extremamente fodida. Ela acordava de noite, batia na sua porta, e Mariana
ao abrir encontrava uma Natália com olheiras colossais, suada e tremendo.
-Mari, tem
alguém no meu quarto... por favor me deixa dormir aqui com você...- pedia ela
com a voz fraca de pavor.
-Natália,
vai dormir, porra. Não tem ninguém no seu quarto, você andou cheirando demais.-
E fechava
a porta.
Quando
Natália não voltou pra casa na sexta à noite, Mariana nem ligou. A amiga
costumava passar as noites fora no fim de semana, normalmente em alguma
república onde ela faria sexo com cinco caras ao mesmo tempo.
No sábado
ninguém vira Natália, e Mariana começou a ficar preocupada.
No
terceiro dia ela já havia ligado para a polícia. Mas já era tarde demais.
Quando
soube da morte trágica da amiga, Mariana se desesperou. Gostava de Natália.
Apesar da amiga de uns tempos pra cá estar virando uma viciada do caralho e
tornando sua vida um inferno, não era má pessoa.
Mal sabia
ela que em breve se juntaria à garota.
Onze e
pouca da noite e o telefone toca.
Tiago se
levanta do sofá, balançando o copo de uísque entre os dedos, e atravessa a
sala, iluminada somente pela luz da tevê.
-Alô?
Uma voz
calma, porém sombria, responde do outro lado da linha.
-Pessoas
estão morrendo na cidade. Eu às levo. Purifico-as e lavo suas almas com seu
próprio sangue. Sangue tem gosto de vida. A vida é irmã da morte. Elas caminham
de mãos dadas. Meu sorriso brilha através da escuridão envolvente da noite. O
ocaso esconde meu rosto. Eu sou a luz. Eu sou a piada mortal. Será que você
consegue me parar?
Tiago
esfrega os olhos, tentando entender o que diabos é aquilo.
-Quê? Que
porra é essa? Quem tá falando?
Um choro
fraquinho e doloroso pode ser ouvido ao fundo, no outro lado da linha.
-Que merda
é essa? Quem é?
A pessoa
do outro lado da linha dá uma risadinha maliciosa, e sussurra:
-Eu estou
te esperando
A ligação
se encerra. Tiago engancha o telefone, recua e deixa seu corpo cair na
poltrona, confuso. “Que porra foi essa?” pensa ele. Talvez seja a confusão, o
cansaço, ou até o uísque, algum desses três fatores, ou os três, faz com que
ele feche os olhos e durma quase instantaneamente. Vários minutos se passam.
São meia
noite e alguma coisa, e o telefone toca novamente.
-Escuta
aqui, seu merda, o que você quer?
Tiago
acordara de súbito e atendera o telefone daquela maneira, sem ao menos
perguntar quem era.
-Tiago?
Não era
a voz de quem lhe telefonara antes. Era Rafael.
-Oi... oi
Rafa, me desculpa, eu acabei de acordar.
-Cara, eu
preciso de você aqui na Trinta e Seis agora mesmo. Aconteceu outro assassinato.
Tiago
sentiu o coração gelar.
-Quem
foi?- perguntou ele temendo pela resposta, que provavelmente ele já sabia.
-Mariana,
a colega de quarto da garota que foi morta semana passada. Ela foi assassinada
da mesma maneira que a amiga.-
As luzes
da viatura iluminavam o interior da casa.
O chão era
uma sopa de sangue e tripas. Os órgãos internos da garota haviam sido retirados
e jogados pela sala. Seus olhos, perfurados. Sua língua, arrancada. Os cantos
de sua boca, cortados formando um sorriso.
Na parede,
estava escrito com algo que não dava pra distinguir se era sangue, tinta, ou
uma mistura dos dois:
“Sorria,
vagabunda! Você irá dormir com aquele de sete bocas nas profundezas do inferno
essa noite!”
Ao lado do
cadáver, a mesma carta deixada no caso anterior.
Tiago não
sabia o que pensar. O celular da garota havia sido deixado em cima do sofá, e
nos registros de ligações, a última chamada havia sido para o seu número. O
assassino havia ligado para ele enquanto matava Mariana.
Essa merda
havia chegado longe demais. Tiago precisava descobrir quem era o puto, e como
esse miserável sabia o número dele.
-Tiago...-
chamou Rafael.
-Fala.
-Eu andei
dando uma pesquisada nos registros. Esses dois não são os primeiros casos de
assassinatos brutais nesse mesmo protocolo no brasil. No decorrer desse
bimestre, ao redor do Brasil todo, pessoas vem sendo brutalmente assassinadas,
por um cara que se intitula “O Profeta Risonho”. Acho que se trata de algum
tipo de serial killer que está viajando o Brasil todo. Provavelmente a essa hora
ele já saiu da cidade.
-Precisamos
pegar esse desgraçado imediatamente. Esse banho de sangue não pode se espalhar
pelo país, Rafa.
-Eu acho
que já está se espalhando...
Dois dias
depois, Tiago acorda no meio da madrugada.
Faz frio.
Ele não entende o motivo de ter acordado tão, cedo, visto que ainda estava
extremamente cansado.
O policial
recosta a cabeça no travesseiro, e tenta voltar ao sono...
Quando ele
ouve uma risadinha maliciosa vindo do outro lado do quarto. Tiago sente cada
pelo do seu corpo se arrepiar. Ele se levanta de súbito e vê alguém parado
diante sua cama.
A figura
usa uma jaqueta preta, com um capuz repousando sobre a cabeça. A luz da rua que
entra pela janela ilumina seu rosto. Rosto? Não, não é possível ver seu rosto.
Ele usa uma máscara. Uma máscara branca, retratando um rosto de expressão
neutra. Na boca do rosto da máscara, está pintado de preto, malfeito, como se
fosse uma pintura a dedo, esticando além dos cantos, um sorriso macabro. No
olho direito duas gotas de tinta seca escorrem, como lágrimas. Na testa da
persona, pintado também à dedo em tinta preta, um círculo com um X no meio.
Tiago não
grita, não pede por clemência, nem ao menos consegue se mover. A figura estica
o braço e acaricia seu rosto.
-Quem é
você?- pergunta Tiago.
-Eu sou a
voz daqueles cuja alma fora condenada. Eu sou aquele que traz a boa nova. Eu
sou o Profeta Risonho- responde a figura.
Sua voz é
calma, suave, porém debochada. Pelo timbre, parece se tratar de um adolescente.
Não deve ter mais de dezoito anos.
Tiago
fecha os olhos e aceita seu destino. O Profeta estraçalha-o dolorosamente com
um facão. Tiago demora a morrer, ao ponto que a morte acaba sendo um alívio
para ele.
O
assassino observa sua arte. Talvez aquela tenha sido sua obra prima. Ele guarda
seu facão, escreve uma carta com suas profecias e deixa ao lado do cadáver.
O Profeta
Risonho sai caminhando pela rua escura.
Pessoas
estão morrendo na cidade. Quem as leva? Ninguém sabe realmente.
Você
provavelmente está lendo isso em algum blog, ou ouvindo pela voz de algum
narrador no You Tube. Sim, eu estou falando com você. Você aí mesmo. Quem você
acha que escreveu tudo isso?
Eu preciso
que minha mensagem seja espalhada. Eu vou encontrar cada um de vocês,
purifica-los, e enviar sua alma para as profundezas do mundo sombrio. Através
da minha história, você já está alarmado de quem eu sou. Aguarde-me. Eu estarei
atravessando o país todo, cada canto do Brasil, procurando por você. Assim,
quando você acordar de madrugada, com aquela sensação de que está sendo
observado, sou eu que estou ali no seu quarto, te observando, te estudando, e
em breve eu te purificarei.
Pode rir
se quiser. Os mais céticos são meus preferidos. O olhar de surpresa no rosto de
vocês quando eu vos corto me delicia.
Em breve
eu estarei na sua casa. Em breve você irá me conhecer.
Pessoas
estão morrendo na cidade. E em breve você será uma delas.
Inclusive
você, meu garoto. Você irá gritar quando eu te cortar.
Meu nome é
Profeta Risonho... e aqui eu divulgo a boa nova. . .
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