segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

O Outro Lado



Era a noite de 6 de janeiro de 2006. Lily, uma garota de 16 anos, pegava seu espelho de bolso e observava seus belos cabelos ruivos que emolduravam seu rosto. Durante a maior parte do dia ela estava feliz - como sempre esteve - porém algo rompeu-se dentro dela quando seu namorado Peter, a estrela do time de futebol do colégio onde eles estudavam, a trocou por outra garota. Peter havia conhecido havia pouco tempo Samantha, uma linda garota da mesma idade de Lily. Desde então, o brilho no olhar de Lily havia se esvaziado e sua alegria parecia ter ido para sempre. A torrente de lágrimas que escorria de seu rosto era um retrato de sua tristeza inconsolável. E para piorar, a atmosfera do quarto tinha um cheiro estranho, um cheiro bizarro. Estava frio, mesmo que o dia tivesse sido abafado. Lily estava coberta com várias camadas de tecido, mas mesmo assim a gelidez do ar perfurava seu corpo até os ossos.
Lily tinha pensamentos confusos em sua mente. Era apenas uma garota, pensava, e tinha uma vida pela frente. Entretanto, o que Peter havia feito com ela - e pior, o que Samantha havia feito com ela eram atos imperdoáveis. O próprio ar que a cercava era irrespirável sabendo que naquele momento os dois poderiam estar sozinhos na casa de um deles fazendo qualquer coisa. Isso corroía a alma de Lily e a fazia pensar em uma solução que estava à beira de se tornar uma resolução: o suicídio.
Foi então que Lily sentiu uma pontada forte em sua cabeça. Não era como se fosse uma dor de cabeça normal, e sim algo pior. O suicídio veio-lhe na mente mais uma vez e ela levantou-se, decidida. Caminhou pelo corredor que ligava o quarto ao banheiro. A passagem misteriosamente estava escura, mesmo com as luzes acesas, mas Lily não deu importância a isso. Queria apenas morrer. E sabia exatamente como faria isso: pegaria todos os remédios que a família guardara e ingeriria o máximo que pudesse de cada um deles, tendo uma morte talvez dolorosa ou cruel, mas eficaz. O rosto de Lily tinha perdido o brilho da garota que havia sido a Rainha do Baile Semestral antes. Agora parecia recoberto por uma máscara. Não se importava de conversar com seus pais, que estavam dormindo naquele momento. Queria acabar com tudo logo. Entrou no banheiro. Na pia, a torneira gotejava ininterruptamente. 
Quando passou defronte ao espelho para alcançar a prateleira onde estavam os remédios, as dores na cabeça de Lily se intensificaram e ela pôs as duas mãos nas têmporas, sentindo que iria ficar louca se aquela pontada se repetisse. Foi aí que ela conseguiu distinguir na dor coisas. A príncipio, uma horrível estática. Depois, vozes. "Barreira... Fraca... Dia... 6... Volte... Venha... Nós..." eram algumas das palavras que permeavam sua mente, com o sentido amplificado devido à voz de onde elas provinham ser estranhamente familiar. Lily virou-se para o grande espelho retangular pregado na parede, como se algo estivesse impelindo-a para lá. Lily observou seu reflexo. Parecia engraçado, como se alguma coisa estivesse diferente. A cor de seus cabelos parecia ter uma tonalidade mais viva, vermelha, sangrenta... Mas este último detalhe Lily não percebeu.
Morrendo de curiosidade, ela estendeu a mão na direção do espelho. Não se importava mais se aquilo seria sobrenatural, afinal iria morrer mesmo. Seus dedos tocaram a superfície do espelho, que moveu-se como se fosse feita de água. Lily sentiu frio, um frio terrível penetrar em sua pele como mil adagas ceifando seus dedos médio e indicador. Mesmo assim, ela tentou mais uma vez, e pouco a pouco resistiu à dor, até que, com o corpo, atravessou totalmente.
Estava no banheiro da sua casa novamente, só que tudo parecia mais... Estranho. Era como se a atmosfera mortal tivesse ganhado vida e sido absorvida pela casa. Lily virou-se para a torneira aberta, que continuava gotejando, e pôs a mão na boca escancarada: onde deveria haver água, pingavam gotas de puro sangue, deixando a pia vermelha. Lily sentiu um gotejar em seu nariz e olhou para o teto. Gotas de sangue vazavam do forro e caíam em todos os lugares do banheiro, deixando a garota com uma sensação de terror e nojo. Lily tentou atravessar o espelho novamente para voltar ao seu mundo, mas não conseguiu. Ela gritou e esmurrou o espelho, mas parou quando notou um arranhão no vidro. Se o quebrasse, estaria presa para sempre naquele mundo, inteiro ele era sua única esperança. A vontade de se suicidar desvaneceu-se quase na hora, mas uma sensação pior veio preencher sua mente: o medo.
Cautelosamente, Lily abriu a porta do banheiro e correu pelo corredor escuro que o ligava ao seu quarto, trombando com algo e caindo no chão. Ao levantar-se, Lily estirou as mãos para frente, mas não sentiu mais nada. O que for que estivesse lá antes, tinha desaparecido. Ela continuou a andar, apenas pensando em atingir o quarto. Por fim, achou a porta e girou a maçaneta no exato momento que ela escutava um misterioso som vindo do quarto de seus pais.
Ao adentrar, Lily trancou a porta com sua chave, que mantinha em um criado-mudo há muito esquecido ao lado da passagem. A garota olhou sua cama e viu que o tecido estava encharcado de sangue. Chorando, Lily sentou-se, vendo que suas lágrimas eram vermelhas e brutais. A cada lágrima que saía, mais o sentimento de ódio poluía seu coração, e inexplicavelmente era um ódio por Samantha, somado a um prazer desconhecido.
"Lily, é a mamãe", bateu a Sra. Stevens, na porta. No entanto, Lily sabia que não era sua mãe. A voz dela estava falhada, como vinda de um gravador, e um horrendo grunhido de animal misturava-se ao som. Aquilo era torturante, e Lily só pensava em uma coisa: sobreviver. Ela viu a maçaneta da porta sendo girada. A garota, sem alternativas, escondeu-se debaixo da cama. Em seguida, a Sra. Stevens entrou, mesmo que a porta estivesse trancada com uma chave.
Lily viu um par de pernas ossudas arrastar-se no quarto. Sua mãe chamava-a, com a voz falhada, mas a cada passo deixava uma trilha gosmenta. Pequenos pedaços de carne caíam de seu corpo, como se aquele corpo podre estivesse andando pela primeira vez, e ela sujou o quarto inteiro antes de ir embora, ainda chamando pela filha. O que quer que tinha estado lá, não era a mãe de Lily, e sim uma coisa nojenta, pútrida.
Lily saiu debaixo da cama, tampando o nariz pelo cheiro insuportável. Escutou a porta dos pais se fechando. Sem pensar duas vezes, ela abriu a maçaneta, sujando sua mão com um pouco de sangue e carne da "mãe" e saiu correndo em direção ao banheiro. No caminho, tropeçou, ferindo a perna. A porta do quarto dos pais se abriu violentamente e desta vez surgiu seu pai. Como a mãe, era um corpo podre, mas com o corpo terrivelmente deformado. A pele amarelada não escondia os dentes proeminentes e uma mandíbula que parecia a de um animal. Parecendo faminto, ele caminhou na direção da filha. Mancando, Lily tentou andar, mas aquilo era muito dificultoso. O Sr. Stevens estava quase a alcançando, rasgando sua roupa com uma de suas garras afiadas, quando a garota conseguiu entrar no banheiro e se trancar no mesmo. Sem testar antes, Lily se jogou no espelho, e conseguiu atravessá-lo, ficando aliviado.
Ao voltar para seu mundo, a atmosfera tenebrosa foi pouco a pouco desaparecendo e ela saiu do banheiro, correu até o quarto e trancou a porta novamente. Jogou-se em sua cama, limpa, e pegou seu espelho de bolso para ver seu próprio reflexo. Parecia normal, até parecer murchar e apodrecer. Horrorizada, Lily jogou o espelho nos pés da cama, e dele surgiu um braço dilacerado - igual ao de Lily, estranhamente, que agarrou o pé da garota. Lily se livrou do que quer que estivesse tentando segurá-la, e jogou o espelho na parede, quebrando-o.
Neste momento, ela ouviu uma batida na porta de seu quarto. Era a Sra. Stevens. Mas será que era a real? "Filha, abra a porta". Lily respondeu que não ia fazer isso, berrando. A Sra. Stevens pareceu murmurar alguma coisa com uma pessoa desconhecida e repetiu o chamado. Como Lily desobedeceu mais uma vez, um homem com voz poderosa gritou que era a polícia. Conscientizando-se de que aquele era o mundo real, Lily abriu a porta, jogando-se para trás em seguida. O policial, apresentando-se como Robert, acalmou-a e disse que queria fazer algumas perguntas. A Sra. Stevens entrou também, mas Robert pediu-a para esperar do lado de fora, ao que foi entedido. Lily logo percebeu que tudo aquilo era estranho, e quis saber o motivo de estar sendo interrogada. Robert respondeu que uma colega sua, Samantha, havia sido morta e o assassino, com seu sangue, havia escrito o nome de Lily na parede onde a vítima fora encontrada encostada. Assustada com tudo aquilo, Lily pensou que tivesse sido Peter, mas logo se conscientizou de que algo muito pior poderia ter acontecido. Calmamente, ela respondeu às perguntas de Robert. Eram perguntas inteligentes, mas vazias para aquele caso - um policial nunca encontraria o assassino. Talvez um exorcista.
Após o interrogatório, Robert disse-lhe que sentia muito por Samantha e que eles fariam o possível para pegar o criminoso, e caso precisassem ou quisessem contar algo para Lily entrariam em contato. Lily agradeceu e deitou-se em sua cama, enquanto a Sra. Stevens entrava. Lily a reprimiu, dizendo que meia-noite e ela estava em choque com tudo aquilo. Sua mãe assentiu e foi dormir.
Mas Lily precisava ter respostas. Precisava saber quem seria maluco de matar Samantha, e se a teoria que ela formulara em sua mente fazia sentido. Primeiro, ligou para Peter - mas quem atendeu foi Robert. Ele disse que Peter não era um dos suspeitos, já que estava dormindo em sua casa, e que Lily podia ficar despreocupada e ir dormir. Não satisfeita, Lily foi até o banheiro novamente e ficou em frente ao espelho. Aquele objeto maldito transpirava tudo que era de ruim. De repente, o vidro embaçou por completo, para depois desembaçar e mostrar um rosto como o de Lily - porém cortado e sangrento.
"Lily... Nós precisávamos de você. Só assim poderíamos fazer contato com o outro lado. Esse seu mundo é tão puro, tão vivo comparado ao nosso... Nós destruímos nosso mundo. Nós fizemos tudo apodrecer e se transformar em carne e sangue. Precisamos de um lar... Por dentro, somos iguais a vocês... Precisávamos de você, Lily. Você é sensitiva a nós. Já nos viu quando pequena, mas quer negar. Agora, no sexto dia do primeiro mês do sexto ano do milênio (6-1-6) a barreira entre nossos mundos se tornou tão frágil, tão tênue... Que podemos transitar para o seu mundo. Mas somente mediante uma troca. Você por mim". Lily indagou porque sua contra-parte queria sair de seu mundo se ela era tão podre quanto ele, e a outra Lily respondeu simplesmente que estava fugindo, que espíritos não só perseguem pessoas como também perseguem outros espíritos. Ela pediu para Lily olhar para o relógio. A garota obedeceu. Eram 00:06, e naquele instante a criatura parecida com Lily a puxou para dentro do espelho, fazendo-a voltar ao mundo tenebroso que se encontrava anteriormente. 
Lily tentou voltar, mas com dois golpes rapidamente quebrou uma das partes do espelho, tornando inviável sua volta. Uma risada debochada ouviu-se do outro lado, como se a outra Lily tivesse trocado de lugar com a verdadeira e agora estivesse ironizando o destino de sua versão mais "pura". Lily mal conseguiu chorar - pois todas as suas lágrimas já haviam descido, mas a porta do banheiro violentamente se abriu e uma voz conhecida lhe disse que não havia tempo para chorar. Lily virou-se e viu Samantha. Mas não era a Samantha de seu mundo, era outra Samantha. Seu corpo estava retorcido em ângulos grotescos, a boca escancarada, os olhos esbugalhados, a garganta rasgada. O pior eram seus braços e pernas. Samantha andava de quatro, mas com a barriga virada para cima, em um espetáculo aterrador. Ela caminhou lentamente na direção de Lily. A garota então percebeu: a criatura parecida com ela havia usado-a para fugir de "Samantha". Enquanto percebia aquilo, Lily sentia o vapor pútrido proveniente da baba do espírito maligno, que já estava próximo de seu rosto. Lily tentou erguer a mão para se defender, mas ela foi mordida com voracidade. Parte da baba da nojenta criatura caiu sobre seu rosto e começou a corroer sua carne. Lily começou a gritar enquanto "Samantha" dizia que aquele era apenas o começo.

No dia seguinte, a polícia encontrou os corpos de Peter Smith, Walter e Clarence Stevens com cortes na garganta, todos encostados a uma parede onde estava escrito "Lily" em sangue. A única suspeita foi Lily Stevens, uma garota descrita com trejeitos muito estranhos, vestindo-se de vermelho - talvez para combinar com seus cabelos e com um comportamento de aparente demência misturada à uma esquizofrenia diagnosticada. Um boletim médico atestou que Lily era doente mental e por isso não podia ser presa, indo ser internada em um manicômio chamado de Way to Sky (Caminho para o Céu).
Quase seis meses depois, em 6 de junho de 2006, o manicômio foi destruído por um incêndio que matou todos os pacientes e funcionários. O único corpo não encontrado foi o de Lily Stevens. Todas as buscas para encontrá-la foram infrutíferas, e seu paradeiro permanece desconhecido, até os dias de hoje.




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