Havia
em Santiago de Compostela, em tempos imemoriais, uma viela na qual os antigos
puseram o singular nome de “Travessa do Cego e do Caolho”. Tal minúsculo
logradouro, não mais que uma passagem curtíssima entre duas ruas de mediana
expressão, abrigava apenas duas casas pequenas, uma de cada lado, cujas janelas
e portas se entreolhavam preguiçosamente. Embora estreita a viela – mal podiam
passar pelo escaninho duas pessoas magras lado a lado –, muitíssimos
transitavam por ela, apesar da perene escuridão que lhe tornava limosas as
pedras desgastadas, porque era uma via que encurtava abençoadamente o caminho
dos romeiros, já tão cansados, que rumavam à Catedral. E o excêntrico nome da
minúscula rua atraía a curiosidade dos viajantes, que estavam sempre a indagar
sobre a sua origem. Mas os de Compostela não gostavam de saciar o desejo dos
transeuntes. Ficavam eles quase sempre sem resposta, visto como teriam de ouvir
falar do Diabo, e isto não era apetecível a uma cidade sagrada, cujo solo
servia de repouso eterno ao Apóstolo do Senhor.
Hoje,
a ruela não existe mais. Mas é possível que ainda permaneça na memória de
alguns dos anciãos o fato que deu origem a um nome tão singular. Rico em anos,
a vós contarei a história, conforme ouvi de meus antepassados, infelizmente
mortos há mais de meio século.
Muito
antes de tombarem os castelos aos rudes golpes dos Irmandinhos, já existia a
rua de nossas preocupações. Nela morava, com mulher e filha, um homem sem
dúvida esforçado, trabalhador incansável e pedreiro de profissão, mas não bem
aquinhoado pelo Destino como seria de justiça e de mister.
Após
um dia de árdua faina, resolveu Anselmo Carvalho – assim ele se chamava –
gastar um pouco do que ganhara entornando uns bons copos de vinho numa das
muitas tabernas que abriam as portas ao cair da noite.
Tendo
entrado numa bodega, a dedo escolhida, porque o vinho não era batizado, e
custava o que de fato valia, desceu uma escada em caracol e recolheu-se a uma
mesa no porão, à frente do corredor abaulado que levava à adega embolorada.
O
nosso homem, que não era de muita conversa, e vivia sempre carrancudo,
sentia-se bem quando sozinho, porque assim podia padecer sossegado a própria
amargura, saboreada a cada gole e juntamente com o azedume do vinho. Sacou do
bolso um par de dados e ficou a jogar consigo mesmo, entediado.
De
cima vieram os acordes de um alaúde. A voz que o acompanhava tirou-o, sim, da
melancolia, mas o lançou num profundo aborrecimento. Reconheceu aquela voz
repugnante. Era a do execrável Francisco Carreira, seu vizinho de porta, a quem
odiava secretamente, por ser ele justamente a origem de toda sua infelicidade.
Anselmo
ouviu os passos que vinham do cerne entenebrecido da adega e supôs que era o
taberneiro retornando, como sempre trôpego. Mas, cabisbaixo, nem notou que
alguém se sentara suavemente à mesma mesa. Apenas ouviu o comentário:
–
Quem joga só, brinca com o Diabo.
O
jogador estava prestes a enxotar o intruso, mas as palavras se imobilizaram na
pontinha dos lábios, que se abriram num sorriso satisfeito, quando o
recém-chegado prosseguiu:
–
Francisco Carreira é mesmo um pedante. Vejo, pela sua reação, ao ouvir a voz
tão desagradável, que vossa mercê também não gosta dele, e com justas razões.
–É
verdade –respondeu Anselmo.
–
Pois lhe digo que, apesar da indolência, ele tem muita sorte na vida. Órfão de
um pai vagabundo e abandonado por uma mãe rameira, encontrou abrigo num
mosteiro onde, em troca de uns serviços leves, teve esmerada educação. Depois,
casou-se com uma bela mulher e fez-se feliz com ela e com os dois filhos
pequenos. Trabalha leve e ganha muito.
–Muito
mais sorte do que ele merece, tenho dito – concordou Anselmo.
–Acho
que Deus quase nunca é justo – afirmou o outro, muito convicto do que dizia.
–Eu
também – resignou-se Anselmo a dizer.
–
Veja bem – prosseguiu o desconhecido. – Enquanto vossa mercê dá duro preparando
a argamassa e assentando pedras pesadas, uma após outra, sob a fúria do Sol,
ele, seu vizinho folgado, apenas por ter aprendido a ler e a escrever com os
malditos monges cistercienses de Monte de Ramo, passa o dia todo na moleza, a
garatujar cartas nas feiras, à sombra de uma tenda confortável e arejada. E,
com esse trabalho suave e alegre, ganha ele, num só dia, porque cobra dos
incultos os olhos da cara, o que vossa mercê, pingando de suor, leva uma semana
inteira para ganhar. Não é justo.
– Isto mesmo. Não é justo.
– Isto mesmo. Não é justo.
–
Enquanto ele tem uma linda mulher, uma morena de corpo voluptuoso, capaz de pôr
em tentação até mesmo o santo arcebispo de Braga, a sua esposa engordou como
uma porca, e é motivo de mofa até para os mendigos que se acumulam e infestam
as escadas da Catedral. Vossa mercê sabia que todos a chamam, às escondidas, de
leitoa?
–
Sabia. Pura verdade. Onde está a justiça de Deus?
–
Enquanto ele tem dois filhos varões, assegurando que se perpetue o nefasto nome
de família, vossa mercê tem apenas uma mocinha tola, que come como um javali, e
está fadada a enfear, ainda bem cedo, assim como a mãe. Decerto que, de tão
gorda, não arranjará marido.
–
Verdade absoluta. Como eu odeio esse homem! Se não temesse o cárcere, já o
teria matado. E o pior é que, por morarmos frente a frente, tenho que suportar
todos os dias a visão de sua vitória fácil e amargar a minha derrota sofrida.
Acho que Deus é cego, porque não vê o meu merecimento. E é surdo, porque não
ouve as minhas preces.
–Não,
não é cego. Nem surdo. Ele vê e ouve tudo. Ele é apenas injusto. Mas podemos
amenizar um pouco essa inconveniência.
–
Como? Só se tu fores tão poderoso quanto Deus.
–
Bem, não chego a tanto – disse humildemente o homem, embora o sarcasmo
modulasse o seu tom de voz . – Mas tenho cá os meus poderes.
–
És o Diabo? O Demo? O Dianho?
–
Vossa mercê o diz.
–
Se é a minha alma o que queres, não farei nenhum acordo contigo.
–Ora,
ora... A sua alma não me interessa. Não posso fazê-lo feliz, mas posso, ao
menos, fazer de vossa mercê um homem rico ou poderoso.
–
Qual é o trato? Coisa boa não pode vir de ti.
–Peça-me
vossa mercê o que quiser. O que lhe aprouver. Realizarei o seu desejo
prontamente. Mas o que eu lhe der, darei em dobro ao seu inimigo.
Anselmo
sorriu com a astúcia do Diabo. Se pedisse cinquenta mil moedas de ouro, cem mil
reais tilintariam nos alforjes dourados do inimigo; se exigisse uma mão repleta
de diamantes, o Diabo encher-lhe-ia as duas com grandes pedras cintilantes, de
magnífico e dobrado valor; se pedisse um condado, o rival teria todo um reino
para explorar. E, malgrado rico, malgrado poderoso, a sua amarga inveja seria
ainda maior, mais intensa e insuportável, porque o rival gozaria o dobro da
riqueza, do poder e do intolerável e ofuscante esplendor. Mas Anselmo
vislumbrou, num lampejo, uma oportunidade de, sobrepujando o demônio em
argúcia, vingar-se plena e definitivamente do desafeto, atirando-o à miséria
irremissível. E pouco lhe importava o enorme – portentoso – preço da escolha. O
brilho inefável da própria astúcia e o desejo nefando de uma vingança crua e
desalmada falavam mais alto.
– O
que ganharei, ele ganhará em dobro...
–Isto
mesmo.
–
Então te peço, solenemente, que me fures um olho.
O
Diabo, embora surpreso com o estratagema do pedreiro, cumpriu a promessa. Eis o
porquê do nome que foi dado à outrora famosa e útil travessa de Compostela.
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